22 maio 2006

Memórias

Fazia contas como ninguém e apesar de não saber ler nem escrever, vigiava atenta e preciosamente a neta, enquanto fazia os trabalhos de casa que trazia da escola primária.
Não lhe leu histórias encantadas, mas contava-as com um pouco de imaginação, sem nenhuma obrigação e muita sabedoria.
Ela pequenina e curiosa, adorava abrir o Atlas e deliciava-se a decorar o nome das estrelas e dos planetas, como se viajasse pelo cosmos cada vez que ensinava ao avô o que aprendera.
Ele, não lhe ensinou a compor verbos nem a fazer ditados, não teve oportunidade para estudar, mas ensinou-lhe algo muito mais valioso e que não se encontra nas páginas dos livros de histórias nem nos manuais da escola: ensinou-a a brincar, a sorrir e a rir, e a exprimir os seus sentimentos.
Demonstrou-lhe a pouco e pouco que se houver força de vontade, todos nós podemos construir o nosso castelo, tal como ele o fez.
Foi com o avô que ela aprendeu (e facilmente) a ser mimada e caprichosa, quando ele a ia buscar à escola para almoçar e todos os dias, sem excepção, lhe comprava um presente, apenas para a ver ainda mais contente e não que ela precisasse.
Foi com ele que a pequenina descobriu os cães, os gatos, os coelhos, as galinhas ( os dois últimos que hoje em dia se crê já nasceram dentro de embalagens plásticas nas prateleiras de supermercados e prontos para consumo).
Foi ainda com ele que percebeu que se podem chocar pintainhos sem as mães galinhas, sendo apenas necessário para isso um alguidar, um cobertor e um aquecedor dos antigos, e eles milagrosamente rachavam o ovo como se estivessem aconchegados pelas mães.
Por se ter sentado como menina reguila em cima da Vespa do avô e ter ficado presa entre a mota e o chão, aprendeu a não se meter com quem ou com o que fosse mais pesado que ela, e não repetiu a proeza.
Quando ela tinha 9 anos e a avó, esposa de seu avô, faleceu vítima de cancro, foi ele que lhe mostrou com a sua forte personalidade, que apesar de existirem momentos pesados, tristes e muito dolorosos, não podemos nunca deixar de sorrir, e que um carinho ou um gesto de amor não apaga a tristeza mas faz com que fique mais pequena e suportável.
Era ele com toda a paciência deste e de outro mundo lhe fazia todas as vontades de menina mimada, como se ela fosse uma princesa a quem era impensável contrariar.
Ele o avô Zé, inteligente, simples, terno, bondoso, com um enorme sentido de humor, brincalhão, paciente, sensato, amante da mousse de chocolate (que conseguiu transmitir para a sua neta), apaixonado incurável das coisas boas da vida e da sua “menina” para ele sempre pequenina que ao longo de 28 anos foi um amigo incansável e conseguiu mudar a vida desta menina e lhe tocou a alma.
E, tal como ela lhe iluminou os dias e os encheu de amor, fica a certeza e a promessa que também ele, irá para sempre permanecer na sua vida, ainda que agora apenas através de doces recordações e alegres fragmentos de uma outra existência…
Por todos estes motivos, e por muitos mais que não caberiam numa enciclopédia de 24 volumes, nem existem palavras que os consigam expressar correctamente…Obrigada avô!
Basta olhar para as estrelas para saber que estás perto de mim, e me fazeres sorrir como ao longo da tua vida tão bem o soubeste fazer…

4 comentários:

Anónimo disse...

Memórias que nunca esquecemos... Memórias que fazem com que as pessoas permaneçam connosco mesmo não estando. São estas memórias que nos fazem seguir em frente e ver que tudo o que fizeram foi para nos ver sorrir e felizes, por isso temos que encarar a vida tal como ela é. Memórias de como uma simples atitude se torna numa importante referência para nós. Pena serem memórias e não actos e atitudes do presente.

Tânia Pato disse...

Ai amiguita ... é tão bom recordarmos coisas que vivemos com pessoas que já não estão entre nós, principalmente se foi com pessoas que nos viram crescer e nos ensinaram tanto.
Ficar com os olhos cheios de lágrimas ao ler isto, quer simplesmente dizer que fiquei bastante emocionada e também me lembrei de tanta coisa passada.
Beijos

mariana disse...

Carina, obrigada pelo comment, adorei...os sentimentos confusos que tenho neste momento, não se comparam nem por sombras á tragédia por que foste obrigada a passar.Mas, uma coisa te digo, as memórias, essas ninguém as pode roubar, e são elas que nos fazem continuar e aceitar a nossa curta e surpreendente passagem pelo planeta Terra!

mariana disse...

Pata,
fico contente por saber que gostaste da minha tentativa de descrever algo difícil de se exprimir e sobretudo escrever.Mas infelizmente a vida é assim mesmo e enquanto não for descoberto o elixir da juventude eterna, teremos que passar por estes momentos tristes, mas que também nos fazem crescer interiormente...resta-nos apenas recordar estas pessoas especiais com muito carinho.